O Avestruz

Todo sábado tenho guardado uma responsabilidade de começo de semana, de tal maneira que não reconheço o domingo como o segundo dia de descanso. Não acho que a semana seja medida por domingos, só estou de tal maneira que a semana parece efêmera diante das minhas responsabilidades. Minhas responsabilidades são tão maiores do que os dias que, quando menos percebo, já é chegada a hora de ser responsável, já tem passado. Nos acréscimos, me re-responsabilizo pela métrica de tempo que não criei, tendo consciência do compromisso que marquei. Não consegui não o ter.
E é nas nossas relações que se constrói a percepção de tempo e espaço. Não é verdade? Mas nessas relações sentimos o tempo e o espaço diferentemente. É o que nos diferencia ou diferencia um grupo de todos. A sensibilidade cega, surda e imperceptível por sensações motoras, a afetabilidade de cada um que não nos deixar ser igual, por mais parecidos que possamos ser – ainda bem. Como cada coisa se inscreve em nossa alma e ativa nossos desejos, a métrica é incapaz de medir a subjetividade humana. E talvez, por meios que desconheço, lidamos diferentemente, cada um, com a metragem da vida. “Temos nosso próprio tempo” e temos tempo a perder, a doar, a viver.
Todo sábado, por responsabilidade adquirida tenho que dar aula de história a um grupo de jovens. Um compromisso inevitável para com os outros, do qual emerge uma responsabilidade angustiante, porque quando menos percebo o sábado já estar por vim, sem eu estar pronto. Mas no último sábado, tendo me preparado rapidamente, ansioso para chegar na hora e honrar compromisso pré-estabelecido, deparo com um inusitado tempo extra que acionou um bem estar sensorial. Sem saber o que fazer com este tempo, metricamente colocado em minhas mãos, eu esqueço por instantes todas as coisas do mundo e passo por um estágio de sinergia total.
Esse meu espaço de trabalho se constitui num formado de uma casa: com área, sala, cozinha, quartos (salas)... é no andar de cima que me encontro. Por trás da casa tem um quintal, ao lado uma horta. Pessoas andam entre as salas, na sala principal, a de aula, ocorre uma sonolenta aula de português. Eu me disperso, vou para a parte da casa onde eu possa ver o quintal, não sei o que pensava até escutar um som e me deparar com um avestruz. Interessantemente o avestruz corria de um lado do quintal para o outro, ao chegar a uma das pontas, pisava numa madeira de onde vinha o som. Era como se ele estivesse condicionado a ir de uma ponta a outra, da cerca à madeira. Eu avidamente observava, querendo descobrir o porquê desse percurso, nada o obriga a correr, pensei até que ele queria manter o condicionamento físico. Então, talvez envergonhado, ele parou depois de umas boas corridas e foi bicar algumas coisas na terra, mas deixou... Eis que retorna a correria de novo. Pára! Vai beber água num balde perto da parede que limita o espaço do muro. O espaço do avestruz é retangular, vai até a dimensão da horta, da qual é separado por uma cerca que continua o limite do quintal.
Começo a pensar sobre o avestruz que corre sem necessidade alguma. Eu lá vou saber as necessidades do avestruz, ainda mais ele que está fora do seu habitat, preso em uma cerca. Tive pena do avestruz, cheguei a sentir sua dor, mas nem por isso eu deixei de achá-lo feio, um feio e triste avestruz com espaço limitado por outros que não são seus iguais. O avestruz tem espaço insuficiente, por isso que ele corre de um lado para o outro, se fosse livre, talvez, correria sempre à frente ou em circulo, não importa. O avestruz não tem tempo, não se relaciona com outros avestruzes. O avestruz não é mais avestruz é uma coisa viva num mundo delimitado e dependente. Porém o avestruz resiste, mesmo não sendo avestruz, mesmo indo de um lado para outro, num espaço medido, em um lugar sem tempo, ele continua a correr. Ele resiste porque ainda se movimenta. Comprometeram a vida do avestruz, mas ele não tem compromisso com ele. Ele não tem seu próprio tempo e nem tempo a perder, a doar, a viver. Ele tem movimentos incompreensíveis para quem não é avestruz. Chegou a hora da aula, e lá vou eu doar meu tempo.

REAVF

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