Do amor e o tempo vivido.

Caminhavam lado a lado.
Mãos dadas, pela casualidade social.
Carregavam semblantes parecidos, sem muita expressão, sem muito vigor.
Tinham um ar de amantes longiquos, daqueles que depois de tanto tempo juntos conquistaram o valoroso silêncio consentido, que não incomoda a nenhum dos dois.
Andavam em passos largos, mas não rápidos, como se quisessem chegar ao seu destino depressa, mas sem que isso transparecesse como um desejo mútuo.
Imaginei como seriam ao chegar em casa, ao estarem a sós entre paredes, xícaras de porcelana e fotografias antigas na cabeceira da cama.
Será que ainda se olhavam enquanto falavam ao outro, ou conversavam como em uma repartição pública, mecanicamente falando e pegando pastas, arquivos, canetas - nesse caso, pegando o frango, passando o prato de arroz, procurando uma faca no jogo de talheres...
Penso se ao deitarem ainda trocavam confidências, como aquelas do começo, dos leves deslizes que cometemos no dia a dia e fazem a gente se sentir como transgressores da ordem, e que contamos como quem roubou um banco, ou desencadeou uma guerra interestadual. Aquelas conversas da noite, na cama, como quem entrega todos os troféis ganhos no dia para a pessoa amada...
Não, seus olhares que não se cruzaram durante toda a caminhada me dizem que não.
Olhavam tudo e todos.
Reclamavam para si mesmos do calor.
Em nenhum momento dirigiram o olhar, a fala ou um suspiro ao outro.
Talvez, de noite na cama, sintam desassossego ao simples toque do calcanhar de um ao encostar na batata da perna do outro, ou em qualquer dedo do pé.

Tinham um ar de quem já amou demais.
Estavam cansados, já haviam amado demais.
Era muito peso ainda ter que amar, e ao mesmo tempo ter paredes, xícaras de porcelana, fotografias antigas na cabeceira, ter frango, arroz, facas e calcanhares...
Era como se o amor tivesse acompanhado os grãos de areia de uma ampulheta, e eles tivessem esquecido de virá-la de novo; ou, simplesmente, por desleixo ou desejo secreto, perderam a ampulheta por algum canto da casa ou do jardim. E, como percebe-se, não tinham mais ânimo algum de procurar. Já haviam amado demais...

Eles não andavam rápido, mas tinham pressa.
Algo edificado durante todos esse anos - algo construído entre a compra da porcelana e a perda da ampulheta -, que não o amor, fazia com que não corressem, com que não soltassem as mãos.
Por respeito, costume ou medo não andavam rápido, mas tinham pressa.
Tinham pressa, queriam chegar logo - acho que não importava aonde, que nem sabiam pra onde iam... Simplesmente iam.
Iam com pressa...
Já amaram demais...

Comentários

Suzan Keila disse…
Poxa, sem palavras... Poesia, Crônica, o q for... Perfeita. Jah ando gostando demais de ler vc, mas, hj, escolhi minha preferida. Consegui ler, sentir, viver cada palavra e cada trechinho... Td tão verdadeiro... Impossível ler e não ficar comovida. Parabéns. =)
Suzan Keila disse…
"Tinham um ar de amantes longiquos, daqueles que depois de tanto tempo juntos conquistaram o valoroso silêncio consentido, que não incomoda a nenhum dos dois."

Muiito bom! =)
REAVF disse…
A partir duma reflexão sobre o ar que rodeia um casal, com seus passos apressados, vc entra num possível cotidiano dos amantes marcado pelo tempo.. a mecanização dos gestos, o peso do retorno e a falta de cerimonia no que parece eterno... entre outras coisas

Muito mesmo bom texto...
;@
Pétrig disse…
Suspiros pra você Joaninha,

"como quem entrega todos os troféis ganhos no dia para a pessoa amada..."
denovo."

Ps - Discordo da analise hisrtórico-folosófica-social do ronaldo, rs.. Alias não da análise, a análise em si, está correta.
Mas, é mais sentimento do que texto. Eu acho.
REAVF disse…
Pareceu uma análise fria, mas eu vi o sentimento...
Pétrig disse…
ainda bem que viu, mas a analise como disse, pareceu ficar fria.

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